Capítulo 1...
Raízes
Antigas
Após a guerra levar o marido de Anasya Lourenço, ela não teve forças para
continuar sozinha na cidade. À volta para a casa da sogra, Dona Eveline Olivar,
pareceu natural, quase instintiva. Era como se as raízes da família a puxassem
de volta — não por obrigação, mas por um chamado silencioso, profundo como o
vento entre as árvores do bosque atrás da propriedade.
Dona Eveline também não era mais a mesma. Desde a morte do marido, e anos
depois do próprio filho, vivia num luto silencioso, bordando lembranças nos
panos de prato, tentando costurar o tempo entre os dias.
Mesmo assim, quando Anasya chegou com o pequeno Hezith nos braços, Eveline
apenas abriu o portão de ferro e sorriu com os olhos marejados. Nenhuma palavra
foi dita naquela manhã, apenas o som das malas sendo arrastadas pela varanda de
madeira antiga.
Passaram-se dias, talvez semanas, até que a rotina se ajustasse: os almoços
voltaram a ter cheiro de ervas do quintal, o fogão à lenha voltou a crepitar e
os passos do menino ecoaram pelos corredores silenciosos.
A casa, de janelas amplas e móveis pesados, se encontrava em uma vasta
propriedade, herança de tempos distantes, quando os homens da família ainda
cultivavam a terra e anotavam suas conquistas em cadernos de couro. Nos fundos,
o bosque se estendia como um véu verde, profundo e misterioso. E no meio do
quintal, solitária e imponente, estava a velha árvore.
Diziam que ela havia sido plantada pelos primeiros membros da família,
muitos anos antes da casa existir. Seu tronco largo e retorcido parecia guardar
histórias. Seus galhos, braços erguidos para o céu, tocavam as estações com uma
sabedoria antiga. E Hezith, mesmo ainda pequeno, sentia que havia algo
diferente nela — como se a árvore também o observasse.
O Café
da Manhã na Varanda
Dona Eveline ajeitou a xícara à frente e suspirou, olhando além da cerca
viva.
— O cheiro desse café me lembra os tempos em que ele voltava da lavoura…
suado, mas com aquele sorriso de quem tinha orgulho da terra. — Ela deu uma
pequena risada nasal. — Teu sogro era teimoso, mas sabia ouvir a terra como
quem ouve música.
Anasya sorriu com ternura.
— E o meu… — disse ela, mexendo lentamente o café. — Vivia dizendo que ia
construir uma estufa de vidro pra cultivar ervas medicinais. Nunca conseguiu,
mas toda noite rabiscava plantas e medidas num caderno de capa azul. Eu ainda o
guardo.
— Esses homens sonhavam grandes… — completou Eveline. — E deixaram a gente
com os pés no chão. Mas ainda bem que nos deram algo maior: esse menino. Ele é
um pedacinho deles dois, de jeitos diferentes.
Anasya assentiu, olhando para dentro da casa.
— Tenho pensado na escolha da escola… A Tia Zê da escola local é doce e uma
ótima professora, mas ele ainda parece deslocado, quieto demais para ter um
convívio escolar.
— Mesmo assim sei que devemos confiar que vai dar tudo certo e ele vai
conseguir se adaptar, afinal estamos falando do meu filho né!
— Cada criança floresce no seu tempo — disse Eveline, esticando o braço por
cima da mesa e apertando de leve a mão da nora. — Hezith observa mais do que
fala. Você já notou como ele olha para a árvore?
Antes que Anasya respondesse, o menino surgiu descalço na varanda,
esfregando os olhos com as costas da mão. Tinha o cabelo revolto e um semblante
desconfiado.
— Mãe… vó…
— Bom dia, meu bem — disse Eveline, abrindo os braços para que ele se
aconchegasse.
— Estava lá perto da árvore… e eu juro que ouvi uns sons estranhos… parecia
um sussurro, tipo quando a gente fala dentro de uma concha.
As duas trocaram um olhar rápido, e Eveline sorriu com doçura.
— Às vezes, o vento brinca de fazer música nas frestas do mundo, Hezith.
Aquela árvore é muito antiga… o tronco dela é torto, cheio de buracos e curvas.
Quando o vento passa por dentro, parece que ela fala. Mas é só o vento, meu
bem. Ou… talvez ela esteja só espantando os pássaros dorminhocos. — Ela piscou
de leve.
Hezith deu um sorrisinho sem graça, ainda encostado no ombro da avó.
— A senhora acha mesmo?
— Acho que sua cabeça é muito esperta, e às vezes inventa histórias antes de
você entender o que está ouvindo. E isso não é ruim. Só mostra que você tem um
coração que escuta mais do que os outros.
Anasya observava a cena em silêncio, seu café agora frio entre as mãos.
— É, ele tem muito do pai. Observador… sonhador também.
— E da mãe — completou Eveline. — Forte e silenciosa como o campo antes da
colheita.
O menino já sorria com mais leveza. Pegou um pedaço de pão e correu para o
quintal, parando um instante para olhar de longe a velha árvore, como quem
duvidava da própria imaginação.
E a árvore… apenas permanecia ali, quieta e enorme, com seus galhos ao vento. Como se tivesse mesmo algo a dizer — mas escolhesse o silêncio por enquanto.
Explorando
a Propriedade
H Hezith não tinha muitas coisas para fazer
naquela imensa propriedade, a não ser brincar com seu querido jerico de
estimação, Buridan. Sempre passeava com ele pelos limites do vasto quintal, descobrindo novas plantas e pequenos animais que iam se escondendo à medida que
ele se aproximava.
Coelhos fugiam aos montes para pequenas tocas embrenhadas em moitas de
capim; pássaros de diversas espécies voavam para as árvores próximas, sempre
com cores vibrantes e chamativas, despertando a atenção e a imaginação do menino
— que acreditava estar dentro de um sonho mágico.
Quando chegava ao grande muro de pedra, antigo e coberto por musgos e
raízes, sentia um medo estranho. Ali ele percebia o quanto era pequeno diante
de tal construção.
Seguindo o muro, chegou até um pequeno riacho. Lá, viu pequenos peixes e se
encantou com a limpidez da água. Uma brisa leve cortava o local — não era fria
nem quente — e trazia uma fragrância suave das flores que sua avó cultivava
perto da casa. Sentiu vontade de continuar explorando. Com uma leve puxada na
corda de Buridan, seguiu adiante.
Como se estivesse procurando por algo, encontrou uma grande fissura no muro.
Ao olhar por ela, viu a propriedade vizinha. Curioso, prendeu Buridan em um
pequeno arbusto e se esticou no muro para espiar.
A casa do outro lado era bem menor que a dele. O quintal não tinha
plantações nem animais. A construção, com aspecto envelhecido, era pintada de
branco — mas a tinta já se desgastava. Havia uma janela antiga na lateral e uma
varandinha simples, feita de madeira, sem nenhum luxo.
Enquanto observava, percebeu roupas estendidas no varal e folhas varridas em
pequenos montes. Talvez morasse alguém ali. Mas quem?
Encafifado com a questão, o menino desamarrou seu companheiro e tomou a
pequena trilha de volta até a casa, decidido a perguntar à avó sobre os
vizinhos.
— Vó, a senhora sabe quem mora na casa atrás do muro?
— Hezith, não fica andando pelo mato sozinho, não, meu amor. Pode ser
perigoso...
— Eu não estava sozinho, vó! Eu estava com o Buridan!
— Eu quis dizer sem um adulto por perto. Pode aparecer uma cobra ou você
pode se machucar... e estar longe demais pra ouvirmos você chamar.
— Eu sei, vó... Mas a senhora e a mamãe estão sempre tão ocupadas pra
passear ou brincar comigo... — disse o menino, cabisbaixo.
— Me desculpa, meu amor. Eu vou tentar tirar mais tempo pra sair e explorar
com você, eu prometo. E até onde sei, quem mora naquela casa é o rabugento do
Seu Gilmar — disse a avó, risonha, tentando animar o neto.
— Rabugento, vó?
— Sim! Ele é bem na dele, não conversa muito e tá sempre com aquela cara
fechada. Mas olha... se um dia você conhecer ele, trate-o com respeito, viu?
— Pode deixar, vó!
— Acho que a filha dele também mora lá. E ela, pelo que sei, tem uma filha
pequena. Não sei como as duas conseguem conviver com um homem daquele...
A Fresta
no Muro
Prendeu o jerico em um galho seco e se esticou como da outra vez, encostando
o rosto na fresta. A mesma casa simples e desbotada permanecia ali. O varal
balançava com roupas claras. O chão estava limpo, como se alguém houvesse
varrido há pouco.
Mas dessa vez havia algo diferente.
Havia alguém.
Uma menina de tranças pretas, talvez um pouco mais nova que ele, sentava-se
no chão de terra. Ela mexia com as mãos em folhas secas, como se brincasse de
montar alguma coisa. Havia calma em seus gestos. Havia silêncio ao redor.
E então ela ergueu o rosto.
E seus olhos encontraram os dele.
No exato instante em que se olharam, o mundo parou.
O som cessou.
O ar ficou denso.
Nada se movia.
Hezith sentiu um arrepio na nuca, como se o tempo tivesse deixado de
existir.
E então… ele viu.
Três futuros. Três caminhos. Três decisões.
No primeiro, ele sorri, se apresenta com doçura, elogia a
roupa que ela usa.
Os dois crescem juntos. Amizade firme, daquelas que resistem às estações.
Compartilham livros, segredos, sonhos.
Ela se casa um dia. E lá está ele: o padrinho.
Anos depois, já com cabelos brancos, tomam chá na varanda relembrando os tempos
de infância, rindo como velhos cúmplices.
No segundo, ele abaixa o olhar e se afasta sem dizer uma
palavra.
Na adolescência, cruzam os mesmos corredores da escola, mas nunca trocam uma
frase.
Ela passa por ele adulta, indiferente.
E quando já estão velhos, ele a vê tricotando sozinha na varanda, como uma
memória que nunca existiu.
No terceiro, ele faz uma careta, talvez até diga algo rude.
Ela responde com um grito, os olhos inflamados de raiva.
Nos anos seguintes, ela o persegue com farpas e palavras duras.
Na juventude, ela sabota amizades, alimenta intrigas.
E um dia, já velhos, ela ergue um muro no quintal, só para não vê-lo passar.
Quando cruzam os olhos na rua, ela vira o rosto — como se o menino fosse um
inimigo de sangue.
E então… o tempo voltou.
A brisa soprou levemente, trazendo o cheiro da terra úmida.
Buridan soltou um relincho suave.
Joana ainda o observava, mas agora com um olhar curioso, como quem também
sentiu algo.
Hezith piscou confuso.
Nada havia acontecido, e ainda assim, tudo havia mudado.
Ele não sabia o que era aquilo — um sonho, uma lembrança, uma invenção da
cabeça.
Mas sabia que tinha que escolher.
E talvez já tivesse escolhido.
Ele recuou da fresta lentamente, soltou Buridan do galho e seguiu pela
trilha de volta à casa, em silêncio.
Atrás de si, a casa branca ficou imóvel.
A menina, invisível atrás do muro, ficou em seu pensamento como uma semente
recém-lançada a terra.
[...]
Mas os pensamentos dentro dele eram barulhentos demais.
As três imagens não saíam da sua cabeça — como se tivessem sido plantadas
ali para sempre. Ele tentava entender... mas não fazia sentido.
Ele não viu o momento em que tomou o desvio.
Caminhou por uma trilha estreita que nem lembrava ter visto antes, onde as
árvores se fechavam mais, o solo ficava mais úmido e as folhas no chão abafavam
os passos. Buridan parou, relinchou baixo e ficou para trás. Hezith apenas
andou, como que empurrado por um sentimento que ele mesmo não compreendia.
E então, quando já sentia o corpo cansado e a mente zonza de tanto pensar, ele
parou.
À sua frente, erguia-se a grande árvore antiga do quintal —
uma presença que sempre estivera lá, mas que agora parecia viva de um modo
diferente.
Ele encostou-se a ela, sentou-se devagar, os ombros pesados, o olhar
perdido. Ficou ali um tempo sem pensar, só respirando, como se o mundo
precisasse parar de girar por um instante.
Então... escutou.
Um som suave. Como se o vento sussurrasse do alto, passando pelas folhas.
Mas não era só o vento.
Era uma voz.
Uma voz doce, feminina, e antiga como o próprio tempo. Ela parecia vir de
cima para baixo, escorrendo pelos galhos, alcançando-o como uma
carícia:
— Olá, criança. Alguma coisa te confunde?
Hezith se levantou num salto. Deu dois passos desajeitados para trás,
tropeçou nas próprias pernas e caiu sentado sobre as folhas secas, de olhos
arregalados.
O coração disparava.
Mas, estranhamente... não havia medo.
Apenas surpresa. E algo mais. Uma calma misteriosa que tomava o lugar do
susto.
— V-você não está falando... você é uma árvore! — disse
ele, ainda atônito, fitando o tronco grosso à sua frente.
A voz veio novamente, com leveza e paciência:
— Sim, sou . E isso quer dizer que não posso falar com você?
Hezith permaneceu em silêncio. Tentava encontrar alguma lógica, mas não
conseguia. Era como se tivesse mergulhado em um sonho do qual não queria
acordar.
— Minha vó falou que isso é coisa da minha imaginação... árvores não
falam...
A resposta veio como uma brisa entre os galhos:
— Sim, sua imaginação é muito boa. Mas eu sou uma árvore. E estou
falando com você sim.
Ele olhou em volta, esperando ver alguém escondido, pregando uma peça. E nada.
Olhou para cima. O céu se filtrava entre os galhos. As folhas dançavam. O
tronco, largo e firme, parecia pulsar com vida.
E então, pela primeira vez, ele sentiu: aquela árvore o
conhecia. De algum modo que ele ainda não compreendia, ela sabia quem ele era.
E talvez... desde sempre.
Hezith permanecia ali, caído no chão, os olhos fixos no tronco grosso à sua
frente. Era como se aquela árvore tivesse se transformado subitamente em algo
novo — ou talvez sempre tivesse sido assim, e ele só agora estivesse vendo de
verdade.
A voz voltou, serena:
— Não precisa ter medo. Você já esteve aqui antes, só que hoje...
você está realmente aqui, quando mais jovem até cheguei a tentar falar com você
mais sua mente e corpo estavam em outro lugar.
— O quê...? — ele murmurou. — O que quer dizer com isso?
— Às vezes, a mente caminha por lugares onde o corpo ainda não
passou. Hoje, você trouxe os dois. Por isso consegue me ouvir claramente.
Hezith engoliu em seco. A voz não era assustadora, nem imperativa. Era
suave, quase como se a árvore estivesse apenas... conversando. Como sua avó
fazia quando ele estava com febre.
Então com um pouco de coragem resolveu contar o que aconteceu.
— Eu… eu vi umas coisas estranhas — disse o menino, ainda ofegante. — Eu vi
uma menina... e depois vi muitas coisas que não aconteceram ainda... ou talvez
nunca aconteçam. Foi como se o tempo tivesse travado. Isso é real?
A árvore demorou um instante antes de responder. O vento passou pelas folhas
com um som semelhante a um suspiro.
— Você viu possibilidades, criança. Aquilo que cresce a partir da
semente de um gesto.
— Possibilidades?
— O tempo... não é uma linha. É um campo. Um terreno fértil. Cada
escolha sua é como um sulco na terra, assim como minhas raízes. Aquilo que você
planta com um olhar, com uma palavra, com um silêncio... cresce. Cresce com
raízes longas.
Hezith apertou os punhos contra as pernas, tentando entender.
— Mas por que eu vejo isso? Isso nunca aconteceu comigo antes. Por que
agora?
— Porque hoje você olhou com o coração aberto, está tocado pelo
contempla mento de tudo ao seu redor. E porque a menina olhou de volta com a
visão da duvida sobre quem é você, dentro dela há a incerteza de quem possa ser
este menino, então seu dom aflorou para tornar certeza o que agora ainda é
duvida. Às vezes, quando dois olhos se cruzam no momento certo, uma porta se
abre. E você tem a chave para atravessá-la.
— Eu não quero isso... ou quero? Eu nem sei o que devo fazer. E se eu errar
na escolha?
A árvore fez um som baixo, como folhas se acariciando.
— Errar é parte do crescimento. Assim como as árvores perdem folhas,
você também perderá certezas. Mas mesmo quando não souber, haverá algo dentro
de você que já sabe qual será a escolha certa. Confie nisso.
Hezith abaixou os olhos. Tudo ainda parecia confuso. Mas ali, encostado
naquela casca áspera e viva, sentia-se menos só.
— Você… tem nome?
A voz pareceu sorrir, mesmo sem boca:
— Me chamo Nansira. Já estou aqui muito antes dos seus pais.
E se a terra quiser, estarei muito depois também.
— E… posso voltar a falar com você?
— Quando o vento trouxer dúvidas, venha. Quando o chão parecer
longe, venha. Quando não souber para onde ir… venha. Eu estarei aqui.
— Mas não se esqueça, Hezith: nem toda resposta precisa ser entendida
no momento em que é dada. Algumas precisam primeiro criar raízes ser analisadas
e ter uma certeza no momento do caminha escolhido, ela será para vida inteira e
talvez até mesmo após ela.
O menino fechou os olhos por um instante.
Quando abriu novamente, o som das folhas voltava ao normal, Buridan pastava
a poucos passos de distância, e o céu começava a mudar de cor.
Hezith levantou-se devagar, com a roupa suja de terra, mas com o coração um
pouco mais limpo de medo.
Ele não sabia o que era tudo aquilo.
Mas sabia que não estava sozinho.
E que, de agora em diante, nada seria igual.
Quando voltou pra casa, o céu já tingia de cobre o telhado envelhecido da
varanda. Hezith caminhava devagar, como se carregasse dentro do peito uma caixa
cheia de segredos que ele mesmo não sabia onde guardar.
Passou direto pela cozinha, onde Anasya mexia em um caldeirão com cheiro de
feijão fresco. Foi até o quintal lateral, onde Dona Eveline regava suas plantas
com delicadeza.
Ele a observou um instante em silêncio.
— Vó… — chamou, baixo.
Ela o olhou e sorriu de leve.
— Oi, meu amor. Andou explorando muito hoje?
Ele hesitou. Pensou em contar sobre a árvore. Sobre a voz. Sobre os futuros.
Mas as palavras pareciam grandes demais para sair da boca.
— Eu… eu vi a menina da casa de trás.
A avó parou o regador. Apenas aguardou.
— Ela olhou pra mim. A gente se olhou por um tempão. E… eu vi umas coisas,
vó. Tipo... coisas que ainda não aconteceram, mas que podiam acontecer. Eu vi a
gente amigos. Eu vi a gente estranhos. Eu a vi velha, sozinha… e também vi ela
sorrindo pra mim.
Dona Eveline se abaixou e limpou as mãos na barra do avental.
— Você tem uma imaginação bonita, Hezith. Isso é um presente, viu?
— Mas não era imaginação. Eu senti. Era como se o tempo
tivesse parado.
Ela passou a mão nos cabelos dele.
— Eu acredito em você, mesmo quando não entendo.
Hezith não disse mais nada. Às vezes, o silêncio da vó valia mais do que
qualquer resposta.
Mais tarde, tentou falar com a mãe, que dobrava lençóis no quarto.
— Mãe… posso te perguntar uma coisa?
Anasya o olhou com um sorriso cansado.
— Claro, meu filho.
— Se eu visse o futuro de alguém só de olhar pra ela... o que você ia
pensar?
A mãe franziu a testa, confusa.
— Você tá sonhando com essas coisas de novo, é?
— Não foi sonho...
— Hezith… eu sei que você tem uma cabeça cheia de mundo, mas cuidado pra não
viver tanto nas ideias e esquecer-se de viver o agora, tá?
Ela o beijou na testa, ajeitou um lençol e saiu do quarto.
Hezith ficou parado, abraçado àquela sensação de estar entendendo algo que
ninguém mais via.
Mas mesmo assim, no fundo do peito, ele sabia o que tinha que fazer.
Sabia qual caminho escolheu.
Na manhã seguinte, antes mesmo que o sol subisse inteiro, ele já estava
perto do muro.
Levava uma flor nas mãos — uma daquelas que só nasciam perto da Nansira.
Encostou o rosto na fresta e esperou.
Ela apareceu.
Ele sorriu.
E estendeu a mão pela abertura com a flor.
— Oi… meu nome é Hezith.
A
Conversa sem Voz
A essa altura, ele já não tinha mais medo. O que tinha — e muito — eram
dúvidas.
Ele não falou de imediato.
Esperou.
Fechou os olhos. Ouvia os passarinhos, o leve farfalhar das folhas. Sentia o
cheiro da terra úmida e a casca quente da árvore tocando suas costas.
Então, ela falou.
— Voltou cedo, criança. O que traz no peito hoje?
— Perguntas… muitas perguntas.
— Que bom. Quem não pergunta, nunca sai do lugar onde a dúvida mora.
Hezith sorriu de lado.
— Você sabia que eu ia voltar?
— A raiz que sente água volta sempre ao mesmo lugar.
— Não é todo dia que se descobre que pode conversar com uma árvore,
certo?
Ele ficou em silêncio por um tempo. Depois, perguntou:
— Por que eu escuto você… e mais ninguém escuta?
A resposta veio com suavidade.
— Porque você escuta de verdade.
— As maiorias das pessoas só ouvem o que quer. Você escuta o que não
espera. Isso faz toda a diferença.
— Então... outras pessoas podiam te ouvir também?
— Podiam. Algumas já ouviram. Mas foram poucas. Uma delas me
plantou, há muito tempo. Outra me visitava quando era criança… e depois se esqueceu.
— Os adultos costumam se afastar daquilo que não conseguem explicar.
— A senhora tá dizendo que minha vó ou minha mãe já ouviram você?
— Talvez sim. Talvez não com palavras, mas com sensações. Um
conselho que surge do nada. Uma calma que vem do chão. Isso também é uma forma
de escutar.
— Mas confesso: há anos não falo com ninguém. Com o tempo, os
humanos voltam seus ouvidos, a mente e o coração para dentro de si mesmos — e
não enxergam nada além da lógica que acreditam ser real.
Hezith abaixou os olhos, pensativo.
— E meu dom… ele tem nome?
— Seu dom não é um truque, nem um título. É uma abertura. Você vê o
que pode ser — não o que vai ser. E isso é mais difícil.
— Mas por que eu?
A árvore demorou um pouco mais para responder.
Como se consultasse os anéis dentro de si.
— Porque o tempo confiou em você. Porque a escolha te escolheu.
— Talvez confie que só você saberá guiar as raízes das escolhas para o
lugar certo.
Hezith olhou para cima, onde os galhos se encontravam com o céu.
— Eu sinto como se tivesse um filme dentro da minha cabeça… Quando vi
aquelas possíveis vidas, parecia que tudo dependia de um gesto. Uma escolha tão
pequena... que dá medo.
— Toda raiz começa pequena.
— E mesmo as escolhas miúdas, quando crescem, mudam a floresta inteira.
— Mas se eu errar?
— Você vai. Todos erram.
— O dom não existe para te dar respostas. Ele existe para te ensinar a
fazer perguntas melhores.
— Você vai enxergar os caminhos — e isso tornará impossível não errar.
Mas garanto… vou te ajudar a caminhar.
O menino encostou a cabeça no tronco.
— Às vezes eu queria ser só normal. Sem ver nada. Sem sentir tanto.
— E mesmo assim, você voltaria aqui.
— Porque quem já viu o tempo por dentro… nunca mais se contenta com o
agora.
Hezith fechou os olhos.
E, por um instante, não quis entender mais nada.
Quis apenas escutar o vento entre os galhos e o pulso silencioso da árvore que,
de algum jeito, batia no mesmo ritmo que o seu.
Rotinas
Hezith tinha 6 anos nessa altura de toda essa vivência, e sua avó e
sua mãe já pensavam bastante sobre sua educação escolar.
Havia apenas uma escola no vilarejo e poucos professores, já que não existiam
muitas crianças em idade escolar.
A escola que havia conseguia instruir os alunos desde o pré-escolar até o nono
ano do ensino fundamental — e, dali em diante, os jovens precisavam buscar
continuar os estudos na cidade mais próxima, onde havia grandes colégios com
mais estrutura e oportunidades.
Sua rotina consistia basicamente em levantar cedo e tomar café da
manhã na varanda com sua mãe e sua avó.
Depois, geralmente ia até o pasto dar bom dia ao seu companheiro Buridan e,
logo em seguida, corria até Nansira.
Ali, como de costume, chegava, passava a mão em sua grossa casca e dizia seu
“bom dia”.
Sempre que fazia isso, sentia uma leve brisa descendo e bagunçando seus
cabelos.
Naquele instante, algo dentro dele acreditava que estava abençoado — e que tudo
dali em diante seria bom.
Em seguida, pegava a trilha que levava até o grande muro de pedra e, ao
chegar à fresta, ajeitava uma pedra no chão para alcançar melhor a altura e ali
ficava, esperando por sua nova amiguinha.
Ela, já sabendo que ele estaria lá, também vinha correndo para conversar.
Ambos ficavam ali, trocando histórias e risos.
Mesmo separados por um muro grande e grosso, dividiam o fato de serem filhos
únicos como uma de suas maiores afinidades.
Passavam horas contando pequenas histórias e experiências.
Nenhum dos dois havia vivido grandes aventuras ainda, mas cada detalhe do
cotidiano ganhava importância naquela troca.
Hezith contava como era o seu quintal, as coisas que fazia com sua mãe e sua
avó.
Joana falava sobre o avô ranzinza que vivia reclamando e sempre estava
mal-humorado.
Eles dividiam tudo, riam juntos, mesmo sem nunca terem se tocado.
Em certo momento, a mãe de Joana gritava da varanda:
— Joana, sai desse muro e vem almoçar!
Ela respondia:
— Já vou, mamãe!
Então se virava para Hezith:
— Vamos nos ver amanhã novamente?
Ele sempre respondia:
— Claro! Amanhã estarei aqui no mesmo horário, tá?
Ela se despedia:
— Tchau, H!
Ele sorria:
— Tchau, Jô!
E assim, esperando que ela sumisse do campo de visão da fresta no muro, ele
observava enquanto ela corria acenando com as mãos para trás.
Sentia-se tão feliz que logo descia da pedra correndo e ia até
Nansira.
— Nossa, ela é tão legal que eu acho que seria louco se eu tivesse escolhido
qualquer outro caminho a não ser me tornar amigo dela — dizia, sorrindo,
enquanto se apoiava na árvore.
E Nansira, silenciosa, sacudia suas folhas.
Nansira não precisava falar nesses momentos.
O menino já tinha suas certezas e respostas, então ela apenas se fazia sentir.
Ele só precisava sentir-se acompanhado nessas boas sensações.
Depois de se expressar com sua amiga enraizada, voltava para casa, onde, nesse período, o almoço já estava quase pronto. Dona Eveline sempre caminhava até a varanda e, de lá, gritava — assim como fazia a mãe de Joana:
— Hezith, vem almoçar!
E sempre, como um ritual, ele passava a mão na árvore e se despedia mentalmente:
“Tchau, minha amiga.”
Nancira balançava suavemente suas folhas, criando uma leve cortina de vento que bagunçava seus cabelos.
Ele então corria, abraçava a avó, e os dois entravam.
Depois do almoço, geralmente ia ao pasto rever seu querido companheiro, Buridan.
Em seguida, retomava sua inacabada saga de explorar a propriedade — que, mesmo depois de anos, ainda lhe parecia cheia de mistérios. Sempre tinha a sensação de que ainda não conhecia tudo o que existia por trás daqueles antigos muros de pedra.
Certo dia, decidiu ir até o portão da casa. Lá, viu pessoas passando a cavalo, charretes indo e vindo, e alguns homens em grupos — todos com roupas iguais, o que, até então, ele não compreendia.
Segurando-se nas grandes barras de ferro antigas, ficou extasiado com a diversidade de roupas, cores e jeitos.
Foi então que, de repente, um rapaz surgiu diante do portão com uma bicicleta velha, carregando dois cestos — um na frente, outro atrás.
O homem pegou um pacote do cesto de trás e veio até o portão.
Quando olhou para o menino — e o menino olhou de volta — através das grades...
Aconteceu de novo.
Retorna novamente aquele arrepio na nuca.
O tempo, em sua concepção, para mais uma vez — e só o que vem são visões em sua mente.Dessa vez, dois possíveis futuros se expõem diante de seus olhos.
Dois caminhos, e apenas uma escolha.
Na primeira escolha: Hezith sorri, agradece o pacote com educação e faz uma pergunta inocente:
“Você mesmo que faz esses pães?”
Ele vê imagens de si mesmo já adolescente, acompanhando o padeiro em suas entregas, conversando e aprendendo sobre massas, fornos e histórias antigas do vilarejo.
Mais crescido, Rogy se torna um conselheiro informal — um “tio do coração” — que o ajuda a entender o valor do trabalho simples e da generosidade.
Já na velhice de seu Rogy, Hezith se vê adulto, ainda passando na padaria e recebendo um pedaço de broa quente com o mesmo afeto de sempre.
Por fim, vê-se ao lado do caixão do velho amigo, prestando um adeus emocionado, mas sereno, por uma amizade sincera que lhe ensin
ou seu primeiro ofício e marcou seu tempo.
A segunda escolha: Hezith apenas observa, não responde — e se esconde atrás do portão, tímido.
Esse recuo leva a uma convivência fria: Rogy passa várias vezes por ele ao longo dos anos, mas sempre com um aceno distante — ou nenhum.
Nunca há conversa entre eles. A padaria torna-se apenas um ponto comum na vila, e o padeiro, uma figura apagada.
Quando Hezith, já adulto, retorna ao vilarejo, descobre que Rogy faleceu.
Uma tristeza silenciosa o invade: nunca chegou a conhecer direito “aquele homem das entregas”.
E uma sensação de “o que poderia ter sido” paira no ar, como vento que bate em porta fechada.