Capítulo 1...
Raízes
Antigas
Após a guerra levar o marido de Anasya Lourenço, ela não teve forças para
continuar sozinha na cidade. À volta para a casa da sogra, Dona Eveline Olivar,
pareceu natural, quase instintiva. Era como se as raízes da família a puxassem
de volta — não por obrigação, mas por um chamado silencioso, profundo como o
vento entre as árvores do bosque atrás da propriedade.
Dona Eveline também não era mais a mesma. Desde a morte do marido, e anos
depois do próprio filho, vivia num luto silencioso, bordando lembranças nos
panos de prato, tentando costurar o tempo entre os dias.
Mesmo assim, quando Anasya chegou com o pequeno Hezith nos braços, Eveline
apenas abriu o portão de ferro e sorriu com os olhos marejados. Nenhuma palavra
foi dita naquela manhã, apenas o som das malas sendo arrastadas pela varanda de
madeira antiga.
Passaram-se dias, talvez semanas, até que a rotina se ajustasse: os almoços
voltaram a ter cheiro de ervas do quintal, o fogão à lenha voltou a crepitar e
os passos do menino ecoaram pelos corredores silenciosos.
A casa, de janelas amplas e móveis pesados, se encontrava em uma vasta
propriedade, herança de tempos distantes, quando os homens da família ainda
cultivavam a terra e anotavam suas conquistas em cadernos de couro. Nos fundos,
o bosque se estendia como um véu verde, profundo e misterioso. E no meio do
quintal, solitária e imponente, estava a velha árvore.
Diziam que ela havia sido plantada pelos primeiros membros da família,
muitos anos antes da casa existir. Seu tronco largo e retorcido parecia guardar
histórias. Seus galhos, braços erguidos para o céu, tocavam as estações com uma
sabedoria antiga. E Hezith, mesmo ainda pequeno, sentia que havia algo
diferente nela — como se a árvore também o observasse.
O Café
da Manhã na Varanda
Dona Eveline ajeitou a xícara à frente e suspirou, olhando além da cerca
viva.
— O cheiro desse café me lembra os tempos em que ele voltava da lavoura…
suado, mas com aquele sorriso de quem tinha orgulho da terra. — Ela deu uma
pequena risada nasal. — Teu sogro era teimoso, mas sabia ouvir a terra como
quem ouve música.
Anasya sorriu com ternura.
— E o meu… — disse ela, mexendo lentamente o café. — Vivia dizendo que ia
construir uma estufa de vidro pra cultivar ervas medicinais. Nunca conseguiu,
mas toda noite rabiscava plantas e medidas num caderno de capa azul. Eu ainda o
guardo.
— Esses homens sonhavam grandes… — completou Eveline. — E deixaram a gente
com os pés no chão. Mas ainda bem que nos deram algo maior: esse menino. Ele é
um pedacinho deles dois, de jeitos diferentes.
Anasya assentiu, olhando para dentro da casa.
— Tenho pensado na escolha da escola… A Tia Zê da escola local é doce e uma
ótima professora, mas ele ainda parece deslocado, quieto demais para ter um
convívio escolar.
— Mesmo assim sei que devemos confiar que vai dar tudo certo e ele vai
conseguir se adaptar, afinal estamos falando do meu filho né!
— Cada criança floresce no seu tempo — disse Eveline, esticando o braço por
cima da mesa e apertando de leve a mão da nora. — Hezith observa mais do que
fala. Você já notou como ele olha para a árvore?
Antes que Anasya respondesse, o menino surgiu descalço na varanda,
esfregando os olhos com as costas da mão. Tinha o cabelo revolto e um semblante
desconfiado.
— Mãe… vó…
— Bom dia, meu bem — disse Eveline, abrindo os braços para que ele se
aconchegasse.
— Estava lá perto da árvore… e eu juro que ouvi uns sons estranhos… parecia
um sussurro, tipo quando a gente fala dentro de uma concha.
As duas trocaram um olhar rápido, e Eveline sorriu com doçura.
— Às vezes, o vento brinca de fazer música nas frestas do mundo, Hezith.
Aquela árvore é muito antiga… o tronco dela é torto, cheio de buracos e curvas.
Quando o vento passa por dentro, parece que ela fala. Mas é só o vento, meu
bem. Ou… talvez ela esteja só espantando os pássaros dorminhocos. — Ela piscou
de leve.
Hezith deu um sorrisinho sem graça, ainda encostado no ombro da avó.
— A senhora acha mesmo?
— Acho que sua cabeça é muito esperta, e às vezes inventa histórias antes de
você entender o que está ouvindo. E isso não é ruim. Só mostra que você tem um
coração que escuta mais do que os outros.
Anasya observava a cena em silêncio, seu café agora frio entre as mãos.
— É, ele tem muito do pai. Observador… sonhador também.
— E da mãe — completou Eveline. — Forte e silenciosa como o campo antes da
colheita.
O menino já sorria com mais leveza. Pegou um pedaço de pão e correu para o
quintal, parando um instante para olhar de longe a velha árvore, como quem
duvidava da própria imaginação.
E a árvore… apenas permanecia ali, quieta e enorme, com seus galhos ao vento. Como se tivesse mesmo algo a dizer — mas escolhesse o silêncio por enquanto.
Explorando
a Propriedade
H Hezith não tinha muitas coisas para fazer
naquela imensa propriedade, a não ser brincar com seu querido jerico de
estimação, Buridan. Sempre passeava com ele pelos limites do vasto quintal, descobrindo novas plantas e pequenos animais que iam se escondendo à medida que
ele se aproximava.
Coelhos fugiam aos montes para pequenas tocas embrenhadas em moitas de
capim; pássaros de diversas espécies voavam para as árvores próximas, sempre
com cores vibrantes e chamativas, despertando a atenção e a imaginação do menino
— que acreditava estar dentro de um sonho mágico.
Quando chegava ao grande muro de pedra, antigo e coberto por musgos e
raízes, sentia um medo estranho. Ali ele percebia o quanto era pequeno diante
de tal construção.
Seguindo o muro, chegou até um pequeno riacho. Lá, viu pequenos peixes e se
encantou com a limpidez da água. Uma brisa leve cortava o local — não era fria
nem quente — e trazia uma fragrância suave das flores que sua avó cultivava
perto da casa. Sentiu vontade de continuar explorando. Com uma leve puxada na
corda de Buridan, seguiu adiante.
Como se estivesse procurando por algo, encontrou uma grande fissura no muro.
Ao olhar por ela, viu a propriedade vizinha. Curioso, prendeu Buridan em um
pequeno arbusto e se esticou no muro para espiar.
A casa do outro lado era bem menor que a dele. O quintal não tinha
plantações nem animais. A construção, com aspecto envelhecido, era pintada de
branco — mas a tinta já se desgastava. Havia uma janela antiga na lateral e uma
varandinha simples, feita de madeira, sem nenhum luxo.
Enquanto observava, percebeu roupas estendidas no varal e folhas varridas em
pequenos montes. Talvez morasse alguém ali. Mas quem?
Encafifado com a questão, o menino desamarrou seu companheiro e tomou a
pequena trilha de volta até a casa, decidido a perguntar à avó sobre os
vizinhos.
— Vó, a senhora sabe quem mora na casa atrás do muro?
— Hezith, não fica andando pelo mato sozinho, não, meu amor. Pode ser
perigoso...
— Eu não estava sozinho, vó! Eu estava com o Buridan!
— Eu quis dizer sem um adulto por perto. Pode aparecer uma cobra ou você
pode se machucar... e estar longe demais pra ouvirmos você chamar.
— Eu sei, vó... Mas a senhora e a mamãe estão sempre tão ocupadas pra
passear ou brincar comigo... — disse o menino, cabisbaixo.
— Me desculpa, meu amor. Eu vou tentar tirar mais tempo pra sair e explorar
com você, eu prometo. E até onde sei, quem mora naquela casa é o rabugento do
Seu Gilmar — disse a avó, risonha, tentando animar o neto.
— Rabugento, vó?
— Sim! Ele é bem na dele, não conversa muito e tá sempre com aquela cara
fechada. Mas olha... se um dia você conhecer ele, trate-o com respeito, viu?
— Pode deixar, vó!
— Acho que a filha dele também mora lá. E ela, pelo que sei, tem uma filha
pequena. Não sei como as duas conseguem conviver com um homem daquele...
A Fresta
no Muro
Prendeu o jerico em um galho seco e se esticou como da outra vez, encostando
o rosto na fresta. A mesma casa simples e desbotada permanecia ali. O varal
balançava com roupas claras. O chão estava limpo, como se alguém houvesse
varrido há pouco.
Mas dessa vez havia algo diferente.
Havia alguém.
Uma menina de tranças pretas, talvez um pouco mais nova que ele, sentava-se
no chão de terra. Ela mexia com as mãos em folhas secas, como se brincasse de
montar alguma coisa. Havia calma em seus gestos. Havia silêncio ao redor.
E então ela ergueu o rosto.
E seus olhos encontraram os dele.
No exato instante em que se olharam, o mundo parou.
O som cessou.
O ar ficou denso.
Nada se movia.
Hezith sentiu um arrepio na nuca, como se o tempo tivesse deixado de
existir.
E então… ele viu.
Três futuros. Três caminhos. Três decisões.
No primeiro, ele sorri, se apresenta com doçura, elogia a
roupa que ela usa.
Os dois crescem juntos. Amizade firme, daquelas que resistem às estações.
Compartilham livros, segredos, sonhos.
Ela se casa um dia. E lá está ele: o padrinho.
Anos depois, já com cabelos brancos, tomam chá na varanda relembrando os tempos
de infância, rindo como velhos cúmplices.
No segundo, ele abaixa o olhar e se afasta sem dizer uma
palavra.
Na adolescência, cruzam os mesmos corredores da escola, mas nunca trocam uma
frase.
Ela passa por ele adulta, indiferente.
E quando já estão velhos, ele a vê tricotando sozinha na varanda, como uma
memória que nunca existiu.
No terceiro, ele faz uma careta, talvez até diga algo rude.
Ela responde com um grito, os olhos inflamados de raiva.
Nos anos seguintes, ela o persegue com farpas e palavras duras.
Na juventude, ela sabota amizades, alimenta intrigas.
E um dia, já velhos, ela ergue um muro no quintal, só para não vê-lo passar.
Quando cruzam os olhos na rua, ela vira o rosto — como se o menino fosse um
inimigo de sangue.
E então… o tempo voltou.
A brisa soprou levemente, trazendo o cheiro da terra úmida.
Buridan soltou um relincho suave.
Joana ainda o observava, mas agora com um olhar curioso, como quem também
sentiu algo.
Hezith piscou confuso.
Nada havia acontecido, e ainda assim, tudo havia mudado.
Ele não sabia o que era aquilo — um sonho, uma lembrança, uma invenção da
cabeça.
Mas sabia que tinha que escolher.
E talvez já tivesse escolhido.
Ele recuou da fresta lentamente, soltou Buridan do galho e seguiu pela
trilha de volta à casa, em silêncio.
Atrás de si, a casa branca ficou imóvel.
A menina, invisível atrás do muro, ficou em seu pensamento como uma semente
recém-lançada a terra.
[...]
Mas os pensamentos dentro dele eram barulhentos demais.
As três imagens não saíam da sua cabeça — como se tivessem sido plantadas
ali para sempre. Ele tentava entender... mas não fazia sentido.
Ele não viu o momento em que tomou o desvio.
Caminhou por uma trilha estreita que nem lembrava ter visto antes, onde as
árvores se fechavam mais, o solo ficava mais úmido e as folhas no chão abafavam
os passos. Buridan parou, relinchou baixo e ficou para trás. Hezith apenas
andou, como que empurrado por um sentimento que ele mesmo não compreendia.
E então, quando já sentia o corpo cansado e a mente zonza de tanto pensar, ele
parou.
À sua frente, erguia-se a grande árvore antiga do quintal —
uma presença que sempre estivera lá, mas que agora parecia viva de um modo
diferente.
Ele encostou-se a ela, sentou-se devagar, os ombros pesados, o olhar
perdido. Ficou ali um tempo sem pensar, só respirando, como se o mundo
precisasse parar de girar por um instante.
Então... escutou.
Um som suave. Como se o vento sussurrasse do alto, passando pelas folhas.
Mas não era só o vento.
Era uma voz.
Uma voz doce, feminina, e antiga como o próprio tempo. Ela parecia vir de
cima para baixo, escorrendo pelos galhos, alcançando-o como uma
carícia:
— Olá, criança. Alguma coisa te confunde?
Hezith se levantou num salto. Deu dois passos desajeitados para trás,
tropeçou nas próprias pernas e caiu sentado sobre as folhas secas, de olhos
arregalados.
O coração disparava.
Mas, estranhamente... não havia medo.
Apenas surpresa. E algo mais. Uma calma misteriosa que tomava o lugar do
susto.
— V-você não está falando... você é uma árvore! — disse
ele, ainda atônito, fitando o tronco grosso à sua frente.
A voz veio novamente, com leveza e paciência:
— Sim, sou . E isso quer dizer que não posso falar com você?
Hezith permaneceu em silêncio. Tentava encontrar alguma lógica, mas não
conseguia. Era como se tivesse mergulhado em um sonho do qual não queria
acordar.
— Minha vó falou que isso é coisa da minha imaginação... árvores não
falam...
A resposta veio como uma brisa entre os galhos:
— Sim, sua imaginação é muito boa. Mas eu sou uma árvore. E estou
falando com você sim.
Ele olhou em volta, esperando ver alguém escondido, pregando uma peça. E nada.
Olhou para cima. O céu se filtrava entre os galhos. As folhas dançavam. O
tronco, largo e firme, parecia pulsar com vida.
E então, pela primeira vez, ele sentiu: aquela árvore o
conhecia. De algum modo que ele ainda não compreendia, ela sabia quem ele era.
E talvez... desde sempre.
Hezith permanecia ali, caído no chão, os olhos fixos no tronco grosso à sua
frente. Era como se aquela árvore tivesse se transformado subitamente em algo
novo — ou talvez sempre tivesse sido assim, e ele só agora estivesse vendo de
verdade.
A voz voltou, serena:
— Não precisa ter medo. Você já esteve aqui antes, só que hoje...
você está realmente aqui, quando mais jovem até cheguei a tentar falar com você
mais sua mente e corpo estavam em outro lugar.
— O quê...? — ele murmurou. — O que quer dizer com isso?
— Às vezes, a mente caminha por lugares onde o corpo ainda não
passou. Hoje, você trouxe os dois. Por isso consegue me ouvir claramente.
Hezith engoliu em seco. A voz não era assustadora, nem imperativa. Era
suave, quase como se a árvore estivesse apenas... conversando. Como sua avó
fazia quando ele estava com febre.
Então com um pouco de coragem resolveu contar o que aconteceu.
— Eu… eu vi umas coisas estranhas — disse o menino, ainda ofegante. — Eu vi
uma menina... e depois vi muitas coisas que não aconteceram ainda... ou talvez
nunca aconteçam. Foi como se o tempo tivesse travado. Isso é real?
A árvore demorou um instante antes de responder. O vento passou pelas folhas
com um som semelhante a um suspiro.
— Você viu possibilidades, criança. Aquilo que cresce a partir da
semente de um gesto.
— Possibilidades?
— O tempo... não é uma linha. É um campo. Um terreno fértil. Cada
escolha sua é como um sulco na terra, assim como minhas raízes. Aquilo que você
planta com um olhar, com uma palavra, com um silêncio... cresce. Cresce com
raízes longas.
Hezith apertou os punhos contra as pernas, tentando entender.
— Mas por que eu vejo isso? Isso nunca aconteceu comigo antes. Por que
agora?
— Porque hoje você olhou com o coração aberto, está tocado pelo
contempla mento de tudo ao seu redor. E porque a menina olhou de volta com a
visão da duvida sobre quem é você, dentro dela há a incerteza de quem possa ser
este menino, então seu dom aflorou para tornar certeza o que agora ainda é
duvida. Às vezes, quando dois olhos se cruzam no momento certo, uma porta se
abre. E você tem a chave para atravessá-la.
— Eu não quero isso... ou quero? Eu nem sei o que devo fazer. E se eu errar
na escolha?
A árvore fez um som baixo, como folhas se acariciando.
— Errar é parte do crescimento. Assim como as árvores perdem folhas,
você também perderá certezas. Mas mesmo quando não souber, haverá algo dentro
de você que já sabe qual será a escolha certa. Confie nisso.
Hezith abaixou os olhos. Tudo ainda parecia confuso. Mas ali, encostado
naquela casca áspera e viva, sentia-se menos só.
— Você… tem nome?
A voz pareceu sorrir, mesmo sem boca:
— Me chamo Nansira. Já estou aqui muito antes dos seus pais.
E se a terra quiser, estarei muito depois também.
— E… posso voltar a falar com você?
— Quando o vento trouxer dúvidas, venha. Quando o chão parecer
longe, venha. Quando não souber para onde ir… venha. Eu estarei aqui.
— Mas não se esqueça, Hezith: nem toda resposta precisa ser entendida
no momento em que é dada. Algumas precisam primeiro criar raízes ser analisadas
e ter uma certeza no momento do caminha escolhido, ela será para vida inteira e
talvez até mesmo após ela.
O menino fechou os olhos por um instante.
Quando abriu novamente, o som das folhas voltava ao normal, Buridan pastava
a poucos passos de distância, e o céu começava a mudar de cor.
Hezith levantou-se devagar, com a roupa suja de terra, mas com o coração um
pouco mais limpo de medo.
Ele não sabia o que era tudo aquilo.
Mas sabia que não estava sozinho.
E que, de agora em diante, nada seria igual.
Quando voltou pra casa, o céu já tingia de cobre o telhado envelhecido da
varanda. Hezith caminhava devagar, como se carregasse dentro do peito uma caixa
cheia de segredos que ele mesmo não sabia onde guardar.
Passou direto pela cozinha, onde Anasya mexia em um caldeirão com cheiro de
feijão fresco. Foi até o quintal lateral, onde Dona Eveline regava suas plantas
com delicadeza.
Ele a observou um instante em silêncio.
— Vó… — chamou, baixo.
Ela o olhou e sorriu de leve.
— Oi, meu amor. Andou explorando muito hoje?
Ele hesitou. Pensou em contar sobre a árvore. Sobre a voz. Sobre os futuros.
Mas as palavras pareciam grandes demais para sair da boca.
— Eu… eu vi a menina da casa de trás.
A avó parou o regador. Apenas aguardou.
— Ela olhou pra mim. A gente se olhou por um tempão. E… eu vi umas coisas,
vó. Tipo... coisas que ainda não aconteceram, mas que podiam acontecer. Eu vi a
gente amigos. Eu vi a gente estranhos. Eu a vi velha, sozinha… e também vi ela
sorrindo pra mim.
Dona Eveline se abaixou e limpou as mãos na barra do avental.
— Você tem uma imaginação bonita, Hezith. Isso é um presente, viu?
— Mas não era imaginação. Eu senti. Era como se o tempo
tivesse parado.
Ela passou a mão nos cabelos dele.
— Eu acredito em você, mesmo quando não entendo.
Hezith não disse mais nada. Às vezes, o silêncio da vó valia mais do que
qualquer resposta.
Mais tarde, tentou falar com a mãe, que dobrava lençóis no quarto.
— Mãe… posso te perguntar uma coisa?
Anasya o olhou com um sorriso cansado.
— Claro, meu filho.
— Se eu visse o futuro de alguém só de olhar pra ela... o que você ia
pensar?
A mãe franziu a testa, confusa.
— Você tá sonhando com essas coisas de novo, é?
— Não foi sonho...
— Hezith… eu sei que você tem uma cabeça cheia de mundo, mas cuidado pra não
viver tanto nas ideias e esquecer-se de viver o agora, tá?
Ela o beijou na testa, ajeitou um lençol e saiu do quarto.
Hezith ficou parado, abraçado àquela sensação de estar entendendo algo que
ninguém mais via.
Mas mesmo assim, no fundo do peito, ele sabia o que tinha que fazer.
Sabia qual caminho escolheu.
Na manhã seguinte, antes mesmo que o sol subisse inteiro, ele já estava
perto do muro.
Levava uma flor nas mãos — uma daquelas que só nasciam perto da Nansira.
Encostou o rosto na fresta e esperou.
Ela apareceu.
Ele sorriu.
E estendeu a mão pela abertura com a flor.
— Oi… meu nome é Hezith.
A
Conversa sem Voz
A essa altura, ele já não tinha mais medo. O que tinha — e muito — eram
dúvidas.
Ele não falou de imediato.
Esperou.
Fechou os olhos. Ouvia os passarinhos, o leve farfalhar das folhas. Sentia o
cheiro da terra úmida e a casca quente da árvore tocando suas costas.
Então, ela falou.
— Voltou cedo, criança. O que traz no peito hoje?
— Perguntas… muitas perguntas.
— Que bom. Quem não pergunta, nunca sai do lugar onde a dúvida mora.
Hezith sorriu de lado.
— Você sabia que eu ia voltar?
— A raiz que sente água volta sempre ao mesmo lugar.
— Não é todo dia que se descobre que pode conversar com uma árvore,
certo?
Ele ficou em silêncio por um tempo. Depois, perguntou:
— Por que eu escuto você… e mais ninguém escuta?
A resposta veio com suavidade.
— Porque você escuta de verdade.
— As maiorias das pessoas só ouvem o que quer. Você escuta o que não
espera. Isso faz toda a diferença.
— Então... outras pessoas podiam te ouvir também?
— Podiam. Algumas já ouviram. Mas foram poucas. Uma delas me
plantou, há muito tempo. Outra me visitava quando era criança… e depois se esqueceu.
— Os adultos costumam se afastar daquilo que não conseguem explicar.
— A senhora tá dizendo que minha vó ou minha mãe já ouviram você?
— Talvez sim. Talvez não com palavras, mas com sensações. Um
conselho que surge do nada. Uma calma que vem do chão. Isso também é uma forma
de escutar.
— Mas confesso: há anos não falo com ninguém. Com o tempo, os
humanos voltam seus ouvidos, a mente e o coração para dentro de si mesmos — e
não enxergam nada além da lógica que acreditam ser real.
Hezith abaixou os olhos, pensativo.
— E meu dom… ele tem nome?
— Seu dom não é um truque, nem um título. É uma abertura. Você vê o
que pode ser — não o que vai ser. E isso é mais difícil.
— Mas por que eu?
A árvore demorou um pouco mais para responder.
Como se consultasse os anéis dentro de si.
— Porque o tempo confiou em você. Porque a escolha te escolheu.
— Talvez confie que só você saberá guiar as raízes das escolhas para o
lugar certo.
Hezith olhou para cima, onde os galhos se encontravam com o céu.
— Eu sinto como se tivesse um filme dentro da minha cabeça… Quando vi
aquelas possíveis vidas, parecia que tudo dependia de um gesto. Uma escolha tão
pequena... que dá medo.
— Toda raiz começa pequena.
— E mesmo as escolhas miúdas, quando crescem, mudam a floresta inteira.
— Mas se eu errar?
— Você vai. Todos erram.
— O dom não existe para te dar respostas. Ele existe para te ensinar a
fazer perguntas melhores.
— Você vai enxergar os caminhos — e isso tornará impossível não errar.
Mas garanto… vou te ajudar a caminhar.
O menino encostou a cabeça no tronco.
— Às vezes eu queria ser só normal. Sem ver nada. Sem sentir tanto.
— E mesmo assim, você voltaria aqui.
— Porque quem já viu o tempo por dentro… nunca mais se contenta com o
agora.
Hezith fechou os olhos.
E, por um instante, não quis entender mais nada.
Quis apenas escutar o vento entre os galhos e o pulso silencioso da árvore que,
de algum jeito, batia no mesmo ritmo que o seu.
Rotinas
Hezith tinha 6 anos nessa altura de toda essa vivência, e sua avó e
sua mãe já pensavam bastante sobre sua educação escolar.
Havia apenas uma escola no vilarejo e poucos professores, já que não existiam
muitas crianças em idade escolar.
A escola que havia conseguia instruir os alunos desde o pré-escolar até o nono
ano do ensino fundamental — e, dali em diante, os jovens precisavam buscar
continuar os estudos na cidade mais próxima, onde havia grandes colégios com
mais estrutura e oportunidades.
Sua rotina consistia basicamente em levantar cedo e tomar café da
manhã na varanda com sua mãe e sua avó.
Depois, geralmente ia até o pasto dar bom dia ao seu companheiro Buridan e,
logo em seguida, corria até Nansira.
Ali, como de costume, chegava, passava a mão em sua grossa casca e dizia seu
“bom dia”.
Sempre que fazia isso, sentia uma leve brisa descendo e bagunçando seus
cabelos.
Naquele instante, algo dentro dele acreditava que estava abençoado — e que tudo
dali em diante seria bom.
Em seguida, pegava a trilha que levava até o grande muro de pedra e, ao
chegar à fresta, ajeitava uma pedra no chão para alcançar melhor a altura e ali
ficava, esperando por sua nova amiguinha.
Ela, já sabendo que ele estaria lá, também vinha correndo para conversar.
Ambos ficavam ali, trocando histórias e risos.
Mesmo separados por um muro grande e grosso, dividiam o fato de serem filhos
únicos como uma de suas maiores afinidades.
Passavam horas contando pequenas histórias e experiências.
Nenhum dos dois havia vivido grandes aventuras ainda, mas cada detalhe do
cotidiano ganhava importância naquela troca.
Hezith contava como era o seu quintal, as coisas que fazia com sua mãe e sua
avó.
Joana falava sobre o avô ranzinza que vivia reclamando e sempre estava
mal-humorado.
Eles dividiam tudo, riam juntos, mesmo sem nunca terem se tocado.
Em certo momento, a mãe de Joana gritava da varanda:
— Joana, sai desse muro e vem almoçar!
Ela respondia:
— Já vou, mamãe!
Então se virava para Hezith:
— Vamos nos ver amanhã novamente?
Ele sempre respondia:
— Claro! Amanhã estarei aqui no mesmo horário, tá?
Ela se despedia:
— Tchau, H!
Ele sorria:
— Tchau, Jô!
E assim, esperando que ela sumisse do campo de visão da fresta no muro, ele
observava enquanto ela corria acenando com as mãos para trás.
Sentia-se tão feliz que logo descia da pedra correndo e ia até
Nansira.
— Nossa, ela é tão legal que eu acho que seria louco se eu tivesse escolhido
qualquer outro caminho a não ser me tornar amigo dela — dizia, sorrindo,
enquanto se apoiava na árvore.
E Nansira, silenciosa, sacudia suas folhas.
Nansira não precisava falar nesses momentos.
O menino já tinha suas certezas e respostas, então ela apenas se fazia sentir.
Ele só precisava sentir-se acompanhado nessas boas sensações.
Depois de se expressar com sua amiga enraizada, voltava para casa, onde, nesse período, o almoço já estava quase pronto. Dona Eveline sempre caminhava até a varanda e, de lá, gritava — assim como fazia a mãe de Joana:
— Hezith, vem almoçar!
E sempre, como um ritual, ele passava a mão na árvore e se despedia mentalmente:
“Tchau, minha amiga.”
Nancira balançava suavemente suas folhas, criando uma leve cortina de vento que bagunçava seus cabelos.
Ele então corria, abraçava a avó, e os dois entravam.
Depois do almoço, geralmente ia ao pasto rever seu querido companheiro, Buridan.
Em seguida, retomava sua inacabada saga de explorar a propriedade — que, mesmo depois de anos, ainda lhe parecia cheia de mistérios. Sempre tinha a sensação de que ainda não conhecia tudo o que existia por trás daqueles antigos muros de pedra.
Certo dia, decidiu ir até o portão da casa. Lá, viu pessoas passando a cavalo, charretes indo e vindo, e alguns homens em grupos — todos com roupas iguais, o que, até então, ele não compreendia.
Segurando-se nas grandes barras de ferro antigas, ficou extasiado com a diversidade de roupas, cores e jeitos.
Foi então que, de repente, um rapaz surgiu diante do portão com uma bicicleta velha, carregando dois cestos — um na frente, outro atrás.
O homem pegou um pacote do cesto de trás e veio até o portão.
Quando olhou para o menino — e o menino olhou de volta — através das grades...
Aconteceu de novo.
Retorna novamente aquele arrepio na nuca.
O tempo, em sua concepção, para mais uma vez — e só o que vem são visões em sua mente.Dessa vez, dois possíveis futuros se expõem diante de seus olhos.
Dois caminhos, e apenas uma escolha.
Na primeira escolha: Hezith sorri, agradece o pacote com educação e faz uma pergunta inocente:
“Você mesmo que faz esses pães?”
Ele vê imagens de si mesmo já adolescente, acompanhando o padeiro em suas entregas, conversando e aprendendo sobre massas, fornos e histórias antigas do vilarejo.
Mais crescido, Rogy se torna um conselheiro informal — um “tio do coração” — que o ajuda a entender o valor do trabalho simples e da generosidade.
Já na velhice de seu Rogy, Hezith se vê adulto, ainda passando na padaria e recebendo um pedaço de broa quente com o mesmo afeto de sempre.
Por fim, vê-se ao lado do caixão do velho amigo, prestando um adeus emocionado, mas sereno, por uma amizade sincera que lhe ensin
ou seu primeiro ofício e marcou seu tempo.
A segunda escolha: Hezith apenas observa, não responde — e se esconde atrás do portão, tímido.
Esse recuo leva a uma convivência fria: Rogy passa várias vezes por ele ao longo dos anos, mas sempre com um aceno distante — ou nenhum.
Nunca há conversa entre eles. A padaria torna-se apenas um ponto comum na vila, e o padeiro, uma figura apagada.
Quando Hezith, já adulto, retorna ao vilarejo, descobre que Rogy faleceu.
Uma tristeza silenciosa o invade: nunca chegou a conhecer direito “aquele homem das entregas”.
E uma sensação de “o que poderia ter sido” paira no ar, como vento que bate em porta fechada.
Então, mais uma vez, o tempo retorna ao seu eixo.
Os sons voltam aos seus ouvidos, e a visão turva vai se clareando, revelando a silhueta do homem de pé atrás das grades do antigo portão de ferro — parado, como se já tivesse feito uma pergunta e não obtido resposta.
O menino agora sabe o que está acontecendo.
Dessa vez, não há dúvida alguma sobre a situação que lhe surgiu.
Um pequeno sorriso de canto se forma em seu rosto.
Ele se aproxima da grade, e pronto...
Levando o pacote de pães para sua avó, desvia o caminho rumo à sua folhada amiga.
Chega sorridente e ansioso.
Ao parar diante da árvore, já escuta sua misteriosa e doce voz:
— Muito bem, meu querido. Conseguiu reger sua própria escolha sem medo daquilo que abriria mão. Meus parabéns.
Ele se espanta e diz:
— Nossa... como você já sabe? Eu vim aqui justamente pra te contar!
As folhas balançam, como se uma brisa suave passasse, e o tronco se torce levemente, soltando um pequeno som.
O menino entende: era ela, balançando a “cabeça”, dizendo que sim.
Mesmo assim, ele insiste:
— Como pode saber? O portão é longe daqui… e você está plantada, não pode se mover!
Então, percebendo que o menino ainda subestimava o quanto tudo ao seu redor era misterioso e incrível, ela responde com calma:
— O que você sente quando corre?
— O vento! — responde ele.
— E em que posição você está agora?
— De pé.
Ela então explica:
— Minha criança, o mesmo vento que bagunça seus cabelos quando corre, que refresca seu rosto quando você sua… é o mesmo que sacode minhas folhas.
Ele também balança meus galhos.
E o chão em que você pisa… sou eu quem habita há muitos anos.
Mesmo que minhas raízes não cheguem até você pela terra… eu chego pelo vento.
O menino ainda confuso pergunta:
— Então quer dizer que… daqui, você conseguiu ouvir o que eu disse lá no portão?
Percebendo a crescente confusão do menino, Nancira decide simplificar:
— Não ouvi o que você disse.
Mas senti.
Senti daqui que você havia tomado uma decisão.
E ela foi feita com o coração — tão decidida, tão alegre — que vibrou o chão.
E assim, pelas minhas raízes, eu soube.
Agora você já entendeu tudo.
O menino, em silêncio, se aproxima mais da árvore, coloca a mão desocupada sobre o tronco e pergunta:
— Eu fiz a escolha certa?
Ela então o fortalece:
— Como você se sente com os possíveis eventos que virão?
Ele sorri e responde:
— Estou ansioso para aprender a fazer pão!
Ela responde com ternura:
— Só tome cuidado para não se queimar quando estiver perto do forno…
— Agora vá tomar seu café, meu querido.
Antes que os pães esfriem.
Ainda teremos muito tempo para conversar.
Ele se vira, retornando ao caminho, com a embalagem de pães na mão e uma grande alegria no peito.
Agora, ele tinha certeza absoluta: não foi um evento isolado.
Ele realmente enxergava as possibilidades de futuro com as pessoas.
E, mesmo que ainda não compreendesse tudo…
Se sentia feliz por ser assim.
A manhã seguia calma e todos estavam entregues aos seus afazeres.
Anasya passava e dobrava roupas no quarto, cantarolando uma de suas músicas antigas preferidas; Dona Eveline varria as folhas da varanda enquanto observava o neto brincar com seu fiel companheiro no quintal.
Segurando a pequena corda presa ao pescoço de Buridan, Hezith fazia o girico andar em círculos ao seu redor. Enquanto o animal caminhava, o menino tagarelava, lançando perguntas com a esperança de que, assim como Nancira, o companheiro lhe respondesse:
— Está gostando, Buridan? Estamos devagar demais ou podemos acelerar?
— Você gosta de girar? Está com fome?
As perguntas vinham tão rápido que, mesmo se Buridan pudesse falar, não teria tempo de responder uma antes de chegar a outra. Num instante de pausa, porém, uma dúvida óbvia lhe ocorreu — e ele se culpou por nunca ter pensado nela.
Parou de girar, olhou para a varanda e gritou:
— Vó, quem plantou a Nancira?
Dona Eveline, surpresa, gritou de volta:
— Quem é Nancira?
— A grande árvore, lá perto do pomar!
A avó sorriu, ainda confusa:
— E quem disse que o nome dela é Nancira?
— Ela mesma — respondeu o menino, naturalmente.
Eveline largou a vassoura, desceu o degrau da varanda e fez sinal para que ele se aproximasse. Quando Hezith chegou, ela acariciou o rosto dele:
— Meu filho, já lhe disse que árvores não falam, certo? Mas, como você é criativo, vou acreditar que esse nome veio da sua cabecinha, está bem?
— Quanto a quem plantou a árvore… é mesmo um mistério. Quando seu avô e eu compramos a propriedade, ela já estava aqui. Ele gostava muito daquela árvore; às vezes caminhava até lá, ficava olhando para cima, como se procurasse algo, e voltava sorrindo, feliz como depois de um jogo de futebol.
— Vó, ele nunca falou quem a plantou?
— Não muito. Seu avô era reservado. Apenas dizia que sentia algo diferente quando estava perto dela — respondeu Eveline, apertando as bochechas do neto com ternura. Em seguida, virou‑se e voltou para dentro.
Hezith sentou‑se na escada, frustrado: como descobrir algo tão importante? De repente, ouviu palmas no portão. Correu até lá: era seu novo amigo, Rogy.
— Bom dia, H! Como vai?
— Bom dia, Seu Rogy! Estou ótimo. E o senhor? Muito trabalho na padaria?
— Olha, fazer pães e bolos até que é tranquilo; difícil é sair para entregar de manhã e à tarde — disse o padeiro, tirando o pacote do cesto da bicicleta. — Precisava de alguém para isso.
Sabendo da visão amistosa que tivera, Hezith se ofereceu:
— Posso fazer as entregas!
— Você sabe andar de bicicleta?
— Sei sim! Até monto no meu girico às vezes — mas ele não gosta, então caminhamos lado a lado.
— Acha que aguenta uma bicicleta deste tamanho?
— Posso tentar.
Rogy, ainda receoso, apontou:
— Dê uma volta até o fim da rua e volte. Se for bem, converso com sua avó e combinamos um pagamento.
O menino montou; para ele, a bicicleta nem era tão grande. Foi até o final da rua, e no retorno passou diante da cerca de Joana, que arrumava a mesa para o café.
— Bom dia, Joana! — gritou, acenando com uma mão.
Rogy ficou impressionado; antes mesmo de Hezith parar, já decidira:
— Muito bem! Vamos falar com sua avó.
Na varanda, Eveline e Anasya arrumavam a mesa do café. Rogy cumprimentou‑as timidamente. Eveline percebeu o embaraço:
— Bom dia, Seu Rogy! Aceita um café?
Ele recusou gentilmente, ainda sem saber como começar, até que Hezith falou:
— Mãe, vó, o Seu Rogy quer saber se eu posso trabalhar fazendo as entregas.
Eveline arregalou os olhos:
— Trabalhar? Mas você não é muito novo?
Rogy explicou a necessidade e ofereceu pagamento. Anasya, pensando no benefício social para o filho introvertido, assentiu:
— Seria bom para o Hezith sair, conhecer pessoas, ter responsabilidades.
O silêncio pairou até Eveline olhar o neto — o sorriso dele amoleceu seu coração cansado.
— Está bem — decidiu ela. — Mas terá de seguir minhas recomendações.
Hezith vibrou:
— Oba!
Enquanto Rogy acertava valores e horários, Eveline já começava a enumerar cuidados. Depois que o padeiro se foi, eles tomaram o café com a novidade; no peito do menino, explodia a alegria de contar tudo à amiga Joana — e, claro, à sua mestra enraizada.
Depois que terminou o café, Hezith correu até a fresta do muro e aguardou
Joana passar.
Quando ela surgiu ao longe, ele assobiou, e ela veio apressada.
— Adivinha quem vai entregar o seu pão amanhã de manhã? — disse ele, com
brilho nos olhos.
— Provavelmente o Seu Rogy, como todos os dias! — respondeu, dando de
ombros.
— Não… sou eu!
— Como assim? — perguntou a menina, surpresa.
— Minha mãe e minha avó me autorizaram a trabalhar para o Seu Rogy!
Ele vai fazer os pães e bolos, e eu vou entregá-los — de manhã e à tarde!
Hoje mesmo vou até lá para ele me mostrar os endereços e como tudo funciona.
— Que legal, H! Parabéns, fico feliz por você!
— Obrigado!
Ao fundo, a mãe de Joana gritava chamando-a .
Os amigos se despediram, e o menino correu para seu próximo destino — o mais
especial de todos.
Chegando em frente a Nansira, respirou fundo, olhou para seus galhos
grandiosos e disse, eufórico:
— Acho que você já sabe o que vou contar… mas vou dizer mesmo assim!
Sorriu.
— Eu vou trabalhar entregando os pães do Seu Rogy!
A árvore respondeu com sua voz suave e antiga:
— Minha criança, sua inocência e entusiasmo aquecem meu caule.
Esse brilho nos olhos é efeito de uma escolha bem feita. Estou muito orgulhosa
de você!
— Obrigado, Nansira! Acho que vai ser bom ter essa nova experiência.
E, de certa forma, estou fazendo cumprir o que vi nas possibilidades com o Seu
Rogy…
— Tudo vai se cumprir, meu caro. Talvez não exatamente como espera, nem no
tempo que imagina…
Mas vai acontecer.
Então não antecipe o futuro. Viva cada momento, cada detalhe do agora.
Por mais que consiga vislumbrar o que virá, o mais difícil — e mais importante
— é viver e lidar com o presente.
É nele que está a vida.
O menino ficou em silêncio, assimilando. E então, com o pensamento que o
perturbava desde a manhã, perguntou:
— Nansira… quem plantou você aqui?
A árvore ficou quieta por alguns segundos. Só se ouvia o vento balançando as
folhas.
Sentindo que talvez tivesse sido inconveniente, o menino completou:
— Desculpa. É que minha avó não soube responder, então achei que…
— Achou que perguntar pra mim seria mais fácil saber, certo?
— É… — disse ele, cabisbaixo.
— Minha criança, eu fui separada como uma muda.
E isso foi difícil pra mim…
Por mais que eu tenha muitos anos, ainda sinto que me falta uma parte.
Ou que sou parte de outra árvore — e que essa outra parte está incompleta.
Já não sei mais a diferença…
— Mas… pelo menos você sabe de onde veio?
— Não.
Mas sinto as raízes da minha origem… e fica muito longe daqui.
Assim como você, também queria saber quem me trouxe.
Porque tudo que lembro… já começou aqui.
Me conectei às outras árvores, ao lugar… e me tornei parte dele.
Mas, na minha consciência, tudo se inicia aqui.
— E qual é a sua espécie? Talvez, sabendo disso, eu descubra quem te trouxe.
— Sou uma Cariniana legalis — ou, como muitos me chamaram ao longo
dos anos… um Jequitibá-rosa.
— Nossa, que legal! Você tem dois nomes!
— Se isso te parece interessante, fico feliz.
Mas não sei se investigar sobre mim será bom pra você…
— Quero sim!
Você me ajuda tanto… me dá conselhos e me escuta.
Descobrir sua origem será uma missão de honra pra mim!
— Tudo bem, meu querido. Se é isso que deseja, vá em frente.
Só não deixe que isso desvie você dos seus outros caminhos, está bem?
— Tudo bem! Eu prometo que vou descobrir quem te plantou aqui!
— Agora vá, você ainda precisa levar o Buridan ao pasto e se preparar para
ir à padaria à tarde.
— Tá bom! Tchau, Nansira!
— Espere… lembre-se de respirar fundo antes de tomar qualquer decisão.
Analise com cuidado cada pessoa que você permitir entrar no seu futuro, está
bem?
— Pode deixar! Tchau, até amanhã!
— Nansira, antes de eu ir... me surgiu uma última dúvida.
— Diga, meu querido.
— Já que vou conhecer várias pessoas ao fazer as
entregas de pães... vou ter aquelas visões de futuro com todas elas?
— O que você vê não são apenas visões de futuro,
minha criança. São possibilidades...
Possibilidades de estarem ou não na sua vida, de conviverem ou não com você, de
manterem ou não uma relação que interfira no seu caminho.
— Então... posso não ver nada?
— Exatamente. Se essas pessoas não
representarem mudanças ou impactos reais no seu destino, você não verá nada.
Serão como qualquer pessoa comum no seu dia a dia. Sua conexão com elas não
exigirá nenhuma escolha determinante — e, por isso, seu dom não se manifestará.
— Mas, se acontecer?
— Se acontecer, é porque aquela pessoa estará
atrelada a você para o resto da sua existência... ou da dela, dentro da escolha
feita.
Então, preocupe-se apenas com as decisões que tiver de tomar — e não com as que
não forem suas.
— Entendi, Nansira. Obrigado... até logo!
Com alegria e ansiedade, Hezith voltou para
casa correndo. Ao fundo, o pôr do sol nas serras verdes trazia consigo o frio
da tarde e o canto das sabiás se despedindo do dia — assim como o menino, que
agora se arrumava para ir à padaria aprender seu novo ofício.
Chegando à porta, uma sensação tomou conta
dele — a mesma que sentira nas visões sobre a amizade com Rogy. Respirou fundo
e entrou.
Por alguns minutos, ficou apenas olhando os
produtos nas prateleiras, encantado com o cheiro de pão quente. Cada passo era
uma descoberta: formas diferentes, cores vivas, texturas deliciosas. Até que
viu um pão com uma cereja por cima.
Olhou ao redor. Não havia ninguém.
Estendeu a mão, devagar, querendo pegar a cereja...
De repente, uma corrente de vento entrou pela
porta, que bateu forte, fazendo barulho.
Assustado, recolheu rapidamente a mão, bem na
hora em que o padeiro surgiu pela porta da cozinha.
— Hezith! Como está? Como foi seu dia? —
perguntou Rogy, vindo com um sorriso largo e braços abertos. — Está com fome?
Venha, pode escolher um dos nossos pães. Afinal, agora que vai trabalhar aqui,
precisa conhecer os sabores — se algum cliente perguntar, vai saber responder!
Hezith, ainda com o coração acelerado e com
certo arrependimento pela tentativa, respondeu:
— Olá, seu Rogy... estou bem. — disse com a
voz baixa e os olhos no chão.
O padeiro percebeu o tom triste.
— Aconteceu alguma coisa? Se arrependeu de
vir?
O menino, envergonhado, decidiu se delatar:
— Me desculpa, seu Rogy. Quando cheguei... eu
ia pegar aquela cereja ali — apontou para o pão, sem levantar os olhos.
Rogy sorriu. Foi até a prateleira, pegou o pão
com a cereja e voltou.
— Olha, seria feio sim comer sem pedir. Mas...
o que você fez agora, se confessando, mesmo correndo o risco de perder o
emprego...
Isso foi admirável. Não estou bravo. Muito pelo contrário — disse ele,
entregando o pão ao menino.
— Coma, e saiba que acabou de ganhar minha confiança. Você é mesmo especial,
Hezith. Assim como era o seu avô.
— O senhor conheceu meu avô?
— Conheci. Ele foi um dos primeiros moradores
da vila. Um dos meus primeiros clientes. Era sempre gentil, respeitoso… um
grande homem.
Comendo e mais aliviado, Hezith perguntou:
— E o senhor mora aqui há quanto tempo?
— Uns 30 anos, mais ou menos. Quando cheguei,
aquela árvore grande — o jequitibá rosa — já estava lá.
— A Nansira?
— É... seu avô dizia que a propriedade havia
pertencido antes à família Coelho.
O povo conta que dois irmãos compraram aquilo tudo junto, depois de trabalharem
com café em Minas Gerais.
Mas brigaram feio e dividiram o terreno com aquele muro enorme.
Dizem que nunca mais se falaram.
Um ficou com o lado da árvore… mas ninguém sabe se ela já estava lá quando
compraram.
Hezith ficou surpreso. Agora tinha mais uma
peça do quebra-cabeça. Mas guardou a curiosidade por um tempo: ele tinha um
novo ofício para aprender.
Rogy o levou até a mesa e começou os
ensinamentos.
Explicou a rota das entregas, a quantidade
exata de pães para cada casa, a organização dos pacotes nos cestos da
bicicleta. Como o vilarejo era pequeno, eram poucas casas, mas cada entrega
tinha sua ordem.
Quando tudo estava pronto, saíram juntos.
O padeiro fazia as entregas enquanto apresentava Hezith como seu novo ajudante.
O menino foi conhecendo o vilarejo, as pessoas, os olhares, as expressões... e abacou
aprendendo algo precioso com aquele humilde homem: "A humildade e a gentileza sempre é retribuída na sua mesma
proporção que foi dada."
Isso ficou gravado em seu coração como uma
verdade simples, mas poderosa — daquelas que servem por toda a vida.
Cada portão trazia um sorriso, um elogio, uma palavra de carinho ao padeiro.
Hezith, aos poucos, entendeu que a bondade
silenciosa daquele homem era o que deixava os pães ainda mais quentes.
A última casa foi a da própria família de
Hezith.
Rogy o deixou no portão com um abraço apertado:
— Amanhã cedo, te espero na padaria, tudo bem?
— Tudo sim! Obrigado pelo pão com cereja... e
por tudo que me ensinou!
— Por nada, meu garoto. Mande um abraço para a
Dona Eveline e para a Dona Anasya.
Montou na bicicleta e, já descendo a rua sem
olhar para trás ergueu uma das mãos e, gritou:
— Até amanhã... menino da cereja!
Hezith riu. Ficou olhando o amigo sumir na
curva, com o peito explodindo de alegria.
Tinha aprendido muito naquele dia.
E mal podia esperar para contar tudo para sua mãe... sua avó... e claro, para
Nansira.
Assim terminou o primeiro dia de trabalho desse grande pequeno jovem.
A vida por atrás do Grande Muro
Os dias
iniciavam cedo agora para o menino, que antes conseguia dormir até ouvir a voz
de sua mãe sussurrando baixo no seu ouvido e balançando seus ombros de um lado
para o outro, dizendo:
— Hezith,
acorda, meu amor... acorda que sua avó já está passando o café...
Logo depois,
ele se sentava na cama, abraçava sua mãe dando-lhe o bom dia e ia ao banheiro,
escutando sua avó ao fundo fazendo seus “cacarejos” enquanto jogava milho às
galinhas.
Enquanto ele
se preparava, tanto Dona Eveline quanto Dona Anasya montavam a mesa do café —
uma forrando a toalha xadrez vermelha, enquanto a outra vinha com as cestas e
bandejas com os pães e bolos.
Hezith,
nesse momento, sempre ficava parado na porta da casa, olhando as duas enquanto
montavam a mesa. E, através de seus olhos, isso se tornava uma dança entre
essas duas bailarinas: cada gesto bem calculado de uma sempre se completava com
a ação da outra, cada passo dado por uma era ainda mais salientado pela outra.
Para ele, era lindo e encantador.
Sempre ao
fundo, o som das galinhas comendo e o galo cantando, o barulho do vento
passando pelos galhos das árvores próximas à casa... No ar, um cheiro de manhã
que só dava lugar ao aroma forte de café quando Dona Eveline começava a
entornar a água fervendo no coador com o bule antigo.
Neste
momento, o menino conseguia ter certeza de que não só tinha um dom incrível,
mas também era super privilegiado por ter uma manhã assim todos os dias.
Após o café, a tarefa era ir ao pequeno estábulo atrás da casa dar água e
comida ao seu amigo Buridan. Se o clima estivesse aberto, com sol, então seu
amigo merecia dar uma volta pela propriedade. Eles caminhavam enquanto
conversavam.
Hezith contava tudo que sentia, via e passava
durante o tempo em que não se viam. Mesmo sabendo que seu amigo só estava
caminhando, ele pensava que, por um milésimo de segundo, assim como Nansira,
ele poderia olhar para ele e também dizer tudo que sentiu, viu e passou durante
esse período em que não se viram.
Depois que davam a volta cotidiana, ele
retornava ao estábulo e corria até o muro, onde, a essa altura, Joana já teria
tomado café e estaria disponível para conversar. Então, assim como com Buridan,
eles diziam tudo que sentiram durante o tempo em que não se viram, contavam o
que passaram e também atualizavam as novidades e novas descobertas que fizeram.
Ela, sempre entusiasmada e falastrona, fazia
com que Hezith mais escutasse do que falasse. Geralmente, ele só a observava
falando, pensando em tudo que ainda seria da amizade dos dois, mas não podia
contar para ela, porque sabia que, além dela não acreditar, também correria o
risco de tudo mudar e nada do que viu acontecer. Então, assim como o som do
riacho ao fundo, ele só deixava tudo fluir: apenas escutava alegre, sorria até
mesmo das coisas engraçadas que não entendia e respondia às poucas perguntas
que ela fazia a ele.
Dentre tantas coisas ditas por ela, sem respirar — por querer fazer valer todo o tempo que tinha com seu único amigo —, ela disse algo que o menino teve que interromper, fazendo com que ela voltasse no mesmo assunto e respondesse algumas perguntas.
Contando sobre a relação da sua mãe com seu
avô, ela mencionou que sua mãe queria que seu avô viajasse para visitar seus
outros parentes. Mas ele respondeu que, desde que seu pai e seus tios fundaram
o Vale Alto, ele sempre esteve ali. E que, se alguém quisesse vê-lo, teria que
ir até ele — não ele ir até os outros.
Isso fez com que Hezith perguntasse:
— O seu bisavô esteve aqui quando essa vila
foi criada?
— Bem, diz meu avô — que é filho de um dos
três primeiros moradores —, ele sempre fala como meu bisavô e os irmãos dele
ajudavam as pessoas a construir casas e abrir estradas. Meu avô tem muito
orgulho disso e se sente até um pouco superior aos outros moradores por causa
disso.
— Joana, você poderia me fazer um favor e
perguntar ao seu avô quem plantou aquela árvore grande aqui no quintal da minha
avó?
— Posso sim, mas por que você quer saber isso?
— Por nada... é só uma dúvida que eu tenho. Eu
perguntei para minha avó e ela não sabe.
— Tá bom, vou perguntar e amanhã te digo o que
ele me disser!
— Obrigado, Jo.
— Mas depois vai me contar o motivo da dúvida?
— Vou sim, pode deixar!
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